sábado, outubro 21, 2006



Casablanca
F E L I C I D A D E
C L A N D E S T I N A
Clarice Lispector

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim um tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.







Rainer Maria Rilke
________________________________________________________





PRIMERA ELEGÍA ________________________


¿Quién, si yo gritara, me escucharía entre las órdenes angélicas? Y aun si de repente algún ángel me apretara contra su corazón, me suprimiría su existencia más fuerte. Pues la belleza no es nada sino el principio de lo terrible, lo que somos apenas capaces de soportar, lo que sólo admiramos porque serenamente desdeña destrozarnos. Todo ángel es terrible. Así que me contengo, y me ahogo el clamor de la garganta tenebrosa. Ay, ¿quién de veras podría ayudarnos? No los ángeles, no los hombres, y ya saben los astutos animales que no nos sentimos muy seguros en casa, dentro del mundo interpretado. Nos queda quizás algún árbol en la loma, al cual mirar todos los días; nos queda la calle de ayer y la demorada lealtad de una costumbre, a la que le gustamos, y permaneció, y no se fue. Oh, y la noche, y la noche, cuando el viento lleno de espacio cósmico nos roe la cara: ¿Para quién no permanecería aquélla, la anhelada, la tierna desengañadora, ahí, dolorosamente próxima al corazón solitario? ¿Es más suave con los amantes? Ay, ellos sólo se ocultan uno a otro su suerte. ¿Todavía no lo sabes? Arroja el espacio que abarquen tus brazos hacia los espacios que respiramos; quizá los pájaros sientan el aire ensanchado con un vuelo más íntimo. Sí, las primaveras de veras te necesitaban. Varias estrellas te pedían que las rastrearas. Se alzaba en el pasado una ola hacia ti, o cuando pasabas por una ventana abierta, se te entregaba un violín. Todo esto era una misión, ¿pero fuiste capaz de cumplirla? ¿No estabas siempre distraído por la esperanza, como si todo ello te anunciara a una amada? ¿Dónde intentas alojarla, si en ti los grandes pensamientos extraños entran y salen, y con frecuencia se quedan durante la noche?. Pero si sientes anhelos, canta pues a las amantes; no es, en absoluto, suficientemente inmortal su famoso sentimiento. Aquéllas que casi envidias, las abandonadas, las encuentras mucho más amantes que las saciadas. Empieza siempre de nuevo la alabanza siempre inalcanzable. Piensa: el héroe sigue en pie, aun el ocaso fue para él sólo un pretexto para ser: su último nacimiento. Pero a las amantes la exhausta naturaleza las recoge en su seno, como si no hubiera fuerzas para lograr esto dos veces. ¿Has pensado lo suficiente en Gaspara Stampa, y lo que puede sentir cualquier chica a quien el amado abandonó, frente a tan elevado ejemplo de mujer amante: ¿Llegaré a ser como ella? ¿Estos, los más antiguos dolores, no deberán, por fin, darnos fruto? ¿No es tiempo ya de que, al amar, nos liberemos del amado y, temblorosos, resistamos, como la flecha resiste al arco, para ser, unidos en el salto, algo más que la sola flecha? Porque el permanecer está en ninguna parte. Voces, voces. Corazón mío, escucha, como sólo los santos escuchaban; la enorme llamada los alzaba del suelo; pero ellos seguían de rodillas, de modo imposible, sin darse cuenta: de tal manera escuchaban. No que pudieras soportar la voz de Dios, lejos de eso, pero escucha el soplo, las noticia incesante que se forma del silencio. Murmura hasta ti desde aquellos que han muerto jóvenes. ¿Acaso su destino no se dirigió siempre tranquilamente a ti, en Roma y Nápoles, cuando entrabas en alguna iglesia? O una inscripción sublime se grababa para ti, como hace poco la lápida de Santa María Formosa? ¿Qué quieren de mí? Debo apartar en silencio la apariencia de injusticia que a veces estorba un poco el puro movimiento de sus espíritus. Realmente es extraño ya no habitar la tierra, ya no ejercitar las costumbres apenas aprendidas; a las rosas, y a otras cosas particularmente promisorias, ya no darles el significado del futuro humano; ya no ser aquél que uno fue en interminables manos angustiadas y hasta hacer a un lado el propio nombre, como un juguete roto. Extraño, ya no seguir deseando los deseos. Extraño, ver todo lo que tenía sus propias relaciones, aletear tan suelto en el espacio. Y estar muerto es doloroso, y lleno de recuperación, de modo que uno rastree lentamente un poco de eternidad. Pero todos los vivos cometen el mismo error de diferenciar demasiado tajantemente. Los ángeles (se dice) con frecuencia no sabrían si andan entre los vivos o entre los muertos. La corriente eterna arrastra siempre consigo todas las edades a través de las dos zonas y atruena sobre ambas. Finalmente ya no nos necesitan, los que partieron temprano, uno se desteta dulcemente de lo terrestre, como uno se emancipa con ternura de los senos de la madre. Pero nosotros, que necesitamos tan grandes secretos, nosotros que tan frecuentemente obtenemos del duelo progresos dichosos, ¿podríamos existir sin ellos? ¿Es inútil el mito de que, en la antigüedad, durante las lamentaciones fúnebres por Linos, una atrevida música primitiva se abrió paso en la árida materia inerte; y entonces, por primera vez, en el espacio sobresaltado, en el que un muchacho casi divino de pronto se perdió para siempre, el vacío produjo esa vibración que ahora nos entusiasma y nos consuela y ayuda?
.
.

SEGUNDA ELEGÍA ____________________

.
.

Todo ángel es terrible. Y sin embargo, ay, los invoco a ustedes, casi mortíferos pájaros del alma, sé quiénes son ustedes. Los días de Tobías, ¿dónde quedaron?, cuando uno de los más radiantes apareció en el umbral sencillo de la casa un poco disfrazado para el viaje, ya no tremendo (muchacho para el muchacho, que se asomó, curioso). Si ahora avanzara el arcángel, el peligroso, desde atrás de las estrellas, un solo paso, que bajara y se acercara: el propio corazón, batiendo alto, nos mataría. ¿Quién es usted? Tempranos afortunados, ustedes, los mimados de la creación, cadena de cumbres, cordillera roja del amanecer de todo lo creado -polen de la divinidad floreciente, coyunturas de la luz, corredores, escalones, tronos, espacios del ser, escudos deliciosos, tumultos del sentimiento tormentosamente arrebatado, y de pronto, individualizados, espejos, ustedes, los que recogen nuevamente en sus propios rostros, la propia belleza que han irradiado. Porque nosotros, siempre que sentimos, nos evaporamos; ay, nosotros nos exhalamos a nosotros mismos, nos disipamos; de ascua en ascua soltamos un olor cada vez más débil. Probablemente alguien nos diga: Sí, entras en mi sangre; este cuarto, la primavera se llena de ti..., ¿de qué sirve? Él no puede retenernos, nos desvanecemos en él y en torno suyo. Y aquellos que son hermosos, oh, ¿quién los retiene? Incesantemente la apariencia llega y se va de sus rostros. Como rocío de la hierba matinal se esfuma de nosotros lo que es nuestro, como el calor de un plato caliente. Oh, sonrisa ¿a dónde? Oh, mirada a lo alto: nueva, cálida, fugitiva ola del corazón; sin embargo, ay, somos eso. ¿Entonces el firmamento, en el que nos disolvemos, sabe a nosotros? ¿De veras los ángeles recapturan solamente lo suyo, lo que han irradiado, o a veces, como por descuido, hay algo nuestro en todo ello? ¿Estamos tan entremezclados en sus facciones, como la vaga expresión en los rostros de las mujeres preñadas? Ellos no lo advierten en el torbellino de su regreso a sí mismos. (¿Cómo habrían de advertirlo?). Los amantes podrían, si lo comprendieran, hablar extrañamente en el aire nocturno. Pues parece que todo nos oculta. Mira, los árboles son; las casas que habitamos permanecen todavía. Sólo nosotros pasamos de largo sobre todas las cosas como un cambio de vientos. Y todo se une para acallarnos, mitad por vergüenza quizás, y mitad por esperanza indecible. Amantes, a ustedes, satisfechos el uno en el otro, les pregunto por nosotros. Ustedes, los que se aferran a sí mismos. ¿Tienen pruebas? Miren, me ha ocurrido que mis manos se reconozcan entre sí, o que mi rostro ajado se refugie en ellas. Eso me da cierta sensación. ¿Pero quién, sólo por eso, se atrevió a creer que de veras es? Sin embargo ustedes, los que crecen el uno en el arrobo del otro, hasta que él suplica, abrumado: “Basta”; ustedes, los que crecen, bajo sus recíprocas manos, más exuberantes, como años de grandes uvas; los que mueren a veces, sólo porque el otro se ha expandido demasiado; a ustedes les pregunto por nosotros. Sé que se tocan tan dichosamente porque la caricia retiene, porque no desaparece el sitio que ustedes, los tiernos, ocupan; porque, debajo de todo ello, ustedes sienten la duración pura. Ustedes, de sus abrazos, por ello, casi se prometen eternidad. Sin embargo, cuando ya se han sostenido el sobresalto de la primera mirada, y ya ocurrieron las ansias junto a la ventana y del primer paseo juntos, una vez, por el jardín: Ustedes, amantes, ¿siguen todavía entonces siendo los mismos? Cuando el uno alza al otro hasta su boca y se unen -bebida con bebida-: ¡oh, de qué manera tan extraña el bebedor entonces se escapa de su función! ¿No se asombraron ustedes, en las estelas áticas, de la prudencia de los gestos humanos? El amor y la despedida, ¿no fueron puestos demasiado ligeramente sobre los hombros, como si se tratara de seres hechos de otra materia que nosotros? Recuerden las manos, cómo se posan sin presión, aunque hay vigor en los torsos. Estos dueños de sí mismos lo sabían: Hasta aquí, nosotros; esto es lo nuestro, tocarnos así; que los dioses nos aprieten con mayor fuerza. Pero eso es cosa de los dioses. Si nosotros encontráramos también una pura, contenida, estrecha, humana franja de huerto, nuestra, entre río y roca. Pues nuestro propio corazón nos excede tanto como a aquéllos. Y ya no podemos mirarlo a través de imágenes que lo sosieguen, ni a través de cuerpos divinos, en los que se contenga más.

De "Las Elegías de Duíno" 1922
Versión de Jaime Ferrero Alemparte